sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

RCC - EM CAMINHO PARA O CINQUENTENÁRIO




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JUBILEU RENOVAMENTO

Entregamos aos irmãos, que se querem em Renovação cristã, pelos caminhos e espiritualidade do Renovamento Carismático Católico, este pequeno opúsculo que pretende ajudar a cada grupo de oração e sobretudo a cada pessoa a dar este primeiro passo de caminhada para 2017 – cinquentenário mundial deste “sopro do Espírito” à sua igreja. 

O universo do RCC (dizem que mais de 160 milhões de pessoas) está já de olhos postos nesse grande acontecimento que terá o seu ponto mais significativo em Roma para onde Sua Santidade o Papa Francisco nos convocou por ocasião do Pentecostes desse ano. 

Aí se concentrarão, em vivência carismática, pessoas vindas de todo o mundo (e espero que muitos de nós) para, uma união com o Papa, damos garças ao nosso Deus por mais esta expressão da surpresa permanente que é o Espírito Santo e sobretudo pelo Renovamento Carismático – uma dessas surpresas: maravilhosa como são sempre as obras do Espírito. 

Os órgãos nacionais aprovaram um plano para a nossa caminhada, a que os nossos bispos deram o seu assentimento (estamos em igreja e para nós a palavra dos senhores bispos é indispensável para termos a certeza que este é o caminho a percorrer). 

Para tal se apresenta a palavra do Sr. D. António Dias (Bispo de Portalegre -Castelo Branco) – presidente da Comissão Episcopal do Laicado e Família, bem como o texto de “estudo e oração” que nos é oferecido pelo Prof. Dr. José Carlos Carvalho da Universidade Católica Portuguesa, cujo estudo pormenorizado muito recomendamos.

Esperando que tenha já chegado a todos os grupos o plano para estes três anos, recomendo vivamente que entremos nesta dinâmica tentando que cheguemos ao cinquentenário com uma caminhada semelhante.


P. Magalhães

01/01/2015


 
REAVIVA O DOM QUE ESTÁ EM TI

(cf. 1 Tim 1,6)


Sim, o Dom está em ti. Tudo o que é Dom de Deus implica tarefa humana. Acolher e agradecer esse Dom  exige também fazê-lo “crescer” e colocá-lo ao serviço da comunidade. Esta colaboração, de cada um com a Graça de Deus, pede humildade, oração, estudo, reflexão e vontade de caminhar em Igreja, com e em direção aos irmãos. Nem misticismo doentio, nem frenesi inútil. O equilíbrio é a medida desejada e é expressão de bem-estar. Como sabemos, são objetivos do Renovamento Carismático Católico: promover a conversão pessoal a Jesus Cristo, proporcionar a abertura à Pessoa do Espírito Santo, fomentar a receção e o uso dos dons espirituais, impulsionar a evangelização e fomentar a santidade através da vida orante, sacramental e litúrgica. E tudo isto em fidelidade à doutrina católica, ao magistério da Igreja e em comunhão com o plano pastoral da mesma (cf. Est. Preâmbulo). Isto ir-se-á concretizando pela nossa dedicação e empenho, contando sempre com o Senhor Jesus Cristo e a força do Seu Espírito. Sabemos que na obra da evangelização temos de fazer tudo como se tudo dependesse só de nós, mas sabendo e tendo plena consciência de que tudo depende d’Ele, do Divino Espírito Santo. Ele é o verdadeiro protagonista da Evangelização e não é monopólio de ninguém. Age onde quer, em quem quer, quando quer, como quer e o mais engraçado de tudo isto é que ninguém tem nada com isso. Temos, isso sim, temos de nos alegrar com o bem que se faz e a cultura do amor que se promove. A Igreja que está em Portugal tem, neste momento, alguns desafios pastorais entra mãos e que não podemos esquecer. Para além do empenho que deve colocar em refletir os Lineamenta do próximo Sínodo dos Bispos sobre “A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo”, tem sobre a mesa a reflexão já feita mas ainda por completar sobre a necessidade de “Promover a Renovação da Pastoral da Igreja em Portugal” e, ainda, a preparação, já em curso, para as Comemorações do Centenário das Aparições de Nossa Senhora em Fátima. A par destas provocações ou desafios mundial e nacionais, temos ainda os planos diocesanos e os mais que as várias instâncias da Igreja vão promovendo, em comunhão de objetivos, mas cada um pelo seu caminho e com a sua metodologia.

Assim, a Conferência Nacional do renovamento Carismático Católico (CNRCC) idealizou e vai concretizar um plano de atividades para três nos, incidindo este ano pastoral de 2014-2015 sobre o tema: “Controladores ou administradores da graça”.

Terminará com a Assembleia Nacional de 2015 sob o lema: “Deste-lhes a mesma paga que a nós” (Mt 20,12). A Comissão Episcopal do Laicado e Família, alegra-se com a iniciativa e formula votos para que o CNRCC consiga atingir os objetivos propostos e o Renovamento Carismático Católico congregue forças, com alegria e entusiasmo, para se fortalecer e expandir.


22 de dezembro de 2014
António Eugénio Fernandes Dias
Presidente da Comissão Episcopal do  Laicado e Famíli
Bispo de Portalegre -Castelo Branco

 

Renovamento Carismático (RCC)
 
controladores ou administradores da graça?


A cinquenta anos do Concílio, e a quarenta dos documentos de Malines, importa revisitar estas fontes, pois é neste berço pós-conciliar que o Espírito gerou o RCC. O próprio Papa Francisco pediu esta releitura, esta revisitação em junho de 2014 por ocasião do 37º encontro da convenção do RCC em Roma.

“Nos documentos de Malines, vocês têm um guia, um percurso seguro para não errar o caminho. O primeiro documento é: Orientação teológica pastoral. O segundo é: Renovação Carismática e Ecumenismo, escrito pelo Cardeal Suenens, grande protagonista do Concílio

Vaticano II. O terceiro é: Renovação Carismática e serviço ao Homem, escrito pelo Cardeal Suenens e por Dom Hélder Câmara”.

O Concílio mudou radicalmente o paradigma da relação da Igreja com o mundo. Essa primavera espiritual prolongou-se a seguir em muitos frutos, em vida, em movimentos. Um deles á o RCC. Mas como tudo que é vida, e como tudo que é graça recebida de Deus que não pode não passar pela nossa carnalidade, pode tornar-se ambivalente devido à nossa condição. Essa vida ambivalente também foi sentida e experienciada durante este período pós-conciliar. A vida da fé vive este drama da fragilidade intrínseca à fé e à condição crente. Este drama oscila entre a tentação e o controlo da graça ou da ação de Deus e a administração dessa mesma graça.

Esta oscilação nem sempre é fácil de equilibrar, pois a fé equilibra-se sempre entre a tentação do farisaísmo e a humildade do estilo crente. Tal como o Concílio, o RCC pretende ajudar a renovação espiritual do mundo e da Igreja. Por isso é um fruto da Igreja, na Igreja e para a Igreja, não para si mesmo. Como referiu o Papa Francisco na referida 37ª Convenção do RCC em junho de 2014 em Roma: “Vocês, Renovação Carismática, receberam um grande presente do Senhor. Vocês nasceram de um desejo do Espírito Santo como uma corrente de graça na Igreja e para a Igreja. É isto que os define: uma corrente de graça”.

O Concílio Vaticano II devolveu à Igreja a sua dimensão mística, a qual andava esquecida. Os movimentos de renovação litúrgica, bíblica e ecuménica contribuíram decisivamente para tal. Hoje isso é um dado adquirido. Estes movimentos ajudaram o Concílio a redescobrir as categorias neo-testamentárias de “mistério” (mystérion) ed e comunhão (koinonia). Estes conceitos são fundamentais para pensar a Igreja e para ajudar a Igreja a ser no mundo o que está chamada a ser e a fomentar. A Igreja é assim um mistério de comunhão chamada a ser um mistério de comunhão no seio da grande família humana (cf. GS 1; 4). Isto faz na Igreja no seu todo um sacramento e sinal da salvação (LG 1). Isto significa que a Igreja não é a salvação, é apenas sacramento e sinal da salvação, e já não é pouco. A Igreja não é detentora da graça, ela é dispensadora das graças de Deus, só isso. Não controla nem possui a graça, nem ela nem ninguém. A Igreja oferece o que não é dela, é-lhe dado. A benevolência de Deus não só não é quantificável nem regulamentável, como também não é manipulável. É tanto assim que na fase final do Concílio foram promulgados dois pequenos documentos, mas extremamente significativos: as Declarações sobre “As relações da Igreja com as religiões não cristãs” (Nostra aetate – NA), e sobre “A liberdade relegiosa” (Dignitatis humanae – DH). A Igreja é de tal maneira não detentora da graça que acaba por reconhecer humildemente que a presença da ação santificadora do Espírito não consegue ficar contida nos limites visíveis da forma institucional. Ao dizer-se e apresentar-se amigavelmente ao mundo como sinal e sacramento da salvação em LG 1, a Igreja reconhece a sua contingência e fragilidade, aceita que nem sempre é um vitral que deixa passar a luz santificadora que a sustenta, pois o seu pecado obnubila essa passagem, ainda que a luz de Deus precise do vitral. Ao falarmos da Igreja não falamos de uma entidade abstrata, falamos de nós. E neste “nós” está incluído obviamente o RCC.

Esta consciência muito aguda e lúcida da santidade ferida da Igreja, logo realista, demorou a entrar na versão final do documento conciliar sobre a Igreja – a constituição dogmática Lumen Gentium – devido aos “velhos do Restelo”. Custou muito a uma certa Igreja verter para o texto conciliar a Palavra de Deus de (Rom 7, 14-23). O concilio integrou assim a tese do teólogo

Yves Congar no nº 8 da LG quando reconhece ai que a Igreja é “sempre reformulada”, precisa sempre de renovação, precisa constantemente de purificação s de tornar-se cada vez mais transparente à graça. Logo, não é detentora da graça, é objeto da graça, não é sujeita.

Esta é outra maneira de continuar a dizer que a Igreja sabe-se como objeto de uma dádiva, de um presente que a excede, que não é dela. E quando dizemos Igreja dizemos famílias, uma família de famílias, ou seja, dizemos qualquer grupo de tradição católica da fé, seja movimento, diocese, congregação, instituto, dicastério, ordem, paróquia, associação de fiéis, vigararia, ouvidoria, arciprestado, administração apostólica, conferência episcopal, região pastoral, comunidade, cabido, assembleia, secretariado, famílias, lares cristãos, ou outro Esta é outra maneira de continuar a dizer que a Igreja sabe-se como objeto de uma dádiva, de um presente que a excede, que não é dela. E quando dizemos Igreja dizemos famílias, uma família de famílias, ou seja, dizemos qualquer grupo de tradição católica da fé, seja movimento, diocese, congregação, instituto, dicastério, ordem, paróquia, associação de fiéis, vigararia, ouvidoria, arciprestado, administração apostólica, conferência episcopal, região pastoral, comunidade, cabido, assembleia, secretariado, famílias, lares cristãos, ou outro qualquer.

 
A deontologia da graça
 
 
Esta reviravolta da conceção e na perceção da Igreja custou muito nos trabalhos conciliares. Por isso, as votações não tiveram unanimidade. Continuaram a existir “velhos do Restelo”, como sempre houve e continuará a haver”. Mas felizmente que a igreja seguiu outros caminhos que não os dos velhos do Restelo saudosistas de formas anquilosadas, de tradições completamente ultrapassadas que tiveram o seu tempo e que já não são sinais para ninguém a não ser para os “velhos do Restelo”.

Se esta é a essência da Igreja (mistério de comunhão), necessariamente existirá sempre alguma tensão entre este mistério e a sua expressão, pois, se a realidade é sempre maior do que as palavras, se o conteúdo da Igreja é sempre maior do que a sua forma, então o ser da Igreja é sempre maior do aquilo que se vê ou se deixa ver. Uma grande analogia desta distância não intransponível pode encontrar-se no vitral. O vitral só é belo pela luz que lhe vem de fora, pelo carisma luminoso que ilumina o vitral. O vitral não tem consistência em si mesma. Mas, por outro lado, para que a luz passe da sua essência à possibilidade do jogo fantástico das cores do vitral precisa do vitral. O vitral sem a luz exterior surge fosco, desinteressante. E a luz sem o vitral não permite ver todo o espectro de dons colores que cria no vitral. Ora a Igreja é mais ou menos um vitral assim. Ela precisa da luz exterior do Espírito. Se olharmos só para a forma, para a estrutura ou para a fachada, ela não tem grande brilho. Mas para vermos o brilho e a beleza do vitral eclesial é preciso esta dentro da Igreja, e dentro da grande Igreja, mesmo dentro dos edifícios das nossas Igrejas para ver a beleza dos vitrais proporcionada pela luz exterior que lhe vem do Espírito e que a ilumina. O ,Vaticano II redescobriu que a beleza da Igreja resulta de um carisma que não é possuído pela Igreja – a luz vem de fora do seio da Trindade. Aliás, esta é uma fundamentação teológica da Igreja, não poderia ser doutro modo, como bem explica o documento de Malines. Isto faz com que o ser Igreja, que o ser da existência cristã, tenha a sua consistência precisamente no exterior. A vida à Igreja chega-lhe, fazendo com a sua existência dependa de Outrem – do Espírito de Deus. Então, a própria identidade da Igreja é uma identidade que não se encontra nela mesma, advém-lhe, tem a sua con-sistência (a sua essência) fora dela, vem de Alguém (ec-) que lhe dá a sistência, ou seja, que lhe dá a ec-sistência – a existência. Aliás, esta é a própria etimologia da palavra ecclesia, a qual por sua vez é a tradução grega do original hebraico qahal. A Igreja no Novo Testamento é uma comunidade muito mais densa e consistente do que a hebraica êzah (a assembleia celebrante que se reunia junto da tenda da aliança para adorar o Senhor Deus com Moisés no deserto). A qahal diz precisamente que a Igreja vê a sua essência vir de fora, do Deus Espírito que a anima e enche de dons, de carismas. A essência da Igreja (de qualquer porção da Igreja) resulta da sua ec-sistência, vive, por isso, descentrada de si mesma no sentido em que vive a clamar para o Esposo ao qual diz “vem” (Ap 22,17). A essência não está nela mesma mas nAquele que a desposou para sempre (cf. Ap 19, 1-6). Mas isto não faz com que esta Esposa esteja já ao nível do Esposo, pois quando a Igreja se centrou nela mesma tornou-se uma seita e deixou de ser vitral, só se refletia narcisisticamente a ela mesma. A história da Igreja está, infelizmente, cheia destes momentos, quando a Igreja quis ser palavra dela mesma.

No período do pós-Concílio, a tensão entre o interior e o exterior da Igreja avivou-se,agudizou-se mesmo ao ponto de se tornar num contraponto, numa contradição que opunha de um lado o carisma e do outro a instituição, de um lado a dimensão mais mística e vitalista da fé e do outro a dimensão mais organizacional, de um lado o carisma e do outro o poder, de um lado o Espírito o do outro a estrutura. Mas esta é uma questão de contraposição falsa, pois uma realidade não vive sem a outra. Ora, é neste quadro que surge o RCC no período pós-conciliar, precisamente como fruto do Concílio integrado na sacramentalidade da grande Igreja, como fruto da Igreja, na Igreja e para a própria Igreja, nem fora dela nem acima dela, nem contra ela nem sem ela. Na verdade, se a Igreja é esta comunhão de comunhões, esta comum união de unidades na diversidade (e não na uniformidade), e como realidade interpessoal e comunitária que é, a Igreja viverá sempre no equilíbrio da relação entre a forma e o conteúdo, entre os talentos e a organização desses talentos, entre os dons e implementação desses dons, entre a fé e as obras. E isto porque? Porque não há amor sem estrutura, não existe fé sem regras, não existe alianças sem acordos, não há vida sem princípios ou normas orientadoras. Mas não há que iludir: a própria vida humana vive nesse equilíbrio que nem sempre é fácil. O próprio Jesus nunca deixou de anunciar um reino que não se reduz à pura intimidade ou à subjetividade. O reino de Deus, que a Igreja que todos formamos tenta prolongar e viver, não se reduz à pura interioridade. Isto significa que a fé não é uma questão privada ou sentimental que coloque o crente numa situação privilegiada face aos irmãos, sobretudo face aos irmãos que não acreditam ou que ainda não vivem numa fé amadurecida. A fé é pessoal, efetivamente, mas não é individualista. Se o é então é já outra coisa, mas não a relação de confiança ao Senhor Jesus visibilizada na comunidade eclesial e transformada em integração operativa na chamada grande Igreja.

É verdade que o Papa Francisco, no discurso que fez em junho de 2014 em Roma ao RCC, salientou o carácter místico e inspirado do RCC. Mas tal deve-se à excessiva estruturação a que o movimento foi submetido ou a que se deixou submeter nos últimos anos, podendo eventual ou efetivamente ter esquecido que a vida é sempre maior que as suas expressões. Esta advertência não quer fazer do RCC ou de qualquer outra família na Igreja um grupo de iluminados, anárquico, isto é, “archê” sem princípios), desvinculados de qualquer compromisso ou inserção na chamada grande Igreja. Se assim fosse, estaria a convidar o RCC a transformar-se numa seita. Ora, esse é o perigo constante da Igreja no seu todo e na sua concretude particular. Na verdade, ao chamar a atenção para o nascimento do RCC, está a recordar a natureza do RCC e da própria Igreja no seu todo: uma comunidade carismática, excedida, objeto de um excesso, agraciada com vários dons, doada com vários carismas, isto é, com várias graças concretas para a vida da comunidade. Ora, isto instaura uma deontologia da garça. Como a própria etimologia quer significar, o ser da Igreja e do RCC (a sua ontologia) vemde fora (de-), não é controlável. Isto instaura um estilo deontológico. O serviço resulta precisamente desta característica, desta natureza que lhe vem de fora. Logo, não é própria. A tentação do controle da graça colide com a deontologia da graça. Com o ser que se configura a partir do excesso da ação doadora de Deus através do seu Espírito. Á o Espírito que sopra do exterior e que faz o vitral ser o que está chamado a ser: um reflexo colorido de Alguém que o excede. Como referia Bento XVI no fim do seu pontificado num discurso à Cúria Romana a 21 de dezembro de 2012: “É claro que não somos nós que possuímos a verdade, mas é ela a possuir-nos: Cristo que é a verdade, pegou-nos pela mão, e no caminho da nossa busca apaixonada de conhecimento sabemos que a sua mão nos segura firmemente. Ser sustentados pela mão de Cristo torna-nos livres e seguros ao mesmo tempo”.

Assim, a força motriz não está em nós, mas fora, em Cristo e no seu Espírito. O ser da graça, o pertencer à graça faz o meu ser existir a partir de Cristo. Esta é a deontologia da graça, o ser da graça, o viver na gratuidade de Deus. Esta opção deontológica assume incidências públicas e sociais, mesmo num estilo crente (Christoph Theobald) de vida. 

 
A fundamentação bíblica da deontologia da graça
 

Esta deontologia da graça é vertida por Paulo e pelos evangelistas com várias imagens e com uma linguagem diversificada, tal a riqueza do que está em causa. A Sagrada Escritura apresenta a própria condição humana como sendo gerada e mantida por pura misericórdia, por pura graça, em nome do favor gratuito de Deus. Tal é dito no Antigo Testamento com o conceito “hen” (graça ou favor). É isto quer Paulo traduz como o conceito grego “cháris” (graça, benevolência). A graça para Paulo é o favor de Deus, a sua benevolência e gratuidade (cf. Gal 2, 21; 2 Cor 1, 12) ou a colaboração de Cristo (cf Cor 8, 9). Evoca a proveniência e a precedência da ação de Deus no caso de Abraão (cf Rom 4,16), o chamamento apostólico (cf. Gal 1, 6; 1 Cor 15, 10), na eleição (cf. Rom 11, 5), na justificação (cf. Rom 3, 24; 5,15. 17. 20. 21) em que a graça supera a lei (cf. Rom 6, 14-15). Paulo também fala da “cháris” como algo doado, concedido favoravelmente e gratuitamente (cf. Gal 2, 29; 1 Cor 1, 4; 3, 10; 2 Cor 6, 1; Rom 12, 3.6; 15, 15).

Mas em 1 Cor Paulo concretiza este “favor”, esta “hen” de Deus. Sabendo que para concretizar basta acrescentar em grego a desinência “ma”, então Paulo exemplifica de modo concreto esta benevolência, este excesso, esta dádiva com o substantivo carisma (charisma) para mostrar os vários dons, as várias graças concedidas a cada um e à comunidade. Na etimologia, a raiz “cháris” indica precisamente uma doação, não algo obtido por mérito. Aliás, o que é a salvação se não essa graça imerecida para pôr concretamente a render ao serviço da comunhão, então a pergunta a colocar não pretende averiguar qual o peso (maior ou menor) dado á estrutura, mas antes o que fazer para tornar operativa essa graça de modo a frutificar no meio do mundo. O olhar volta-se sempre para a dádiva e para o doador, e não para aquele/a a quem é doado.

Deste modo, na sua existência concreta o RCC é um dom, é fruto de uma misericórdia imotivada, é fruto de um excesso, pelo que é chamado a comportar-se de maneira deontológica, isto é, de acordo com este ser (segundo esta essência). O RCC está chamado a ser dispensador da graça, espelho da graça, a viver a partirda gratuidade de Deus, e não a ser controlador da graça nem a correr a tentação de ser dono de algo e de Alguém de que não pode dispor. Esta tentação não é nova. O próprio Jesus teve de confrontar-se com ela nos discípulos na subida para Jerusalém em (Mc 9, 38-40):

38”Disse-lhe João: “Mestre, vimos um homem que, em Teu nome, expulsava demónios, mas ele não os segue. Então, nós proibimo-lo, porque não seguia connosco’. 39 Mas Jesus respondeu: ‘não lho proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e, logo a seguir, possa falar mal de Mim. 40 Pois quem não é contra nós é a nosso favor’”.

Já nessa altura os discípulos pretendiam ser eles a impor as regras, a controlar a graça. Se assim fosse, a graça deixaria de ser “gratuita”, deixaria de ser “de graça” para passar a ser eventualmente negociada ou oferecida apenas segundo a lógica do mérito ou segundo a lógica do suborno. Os discípulos queriam ser eles a dominar todo o processo, queriam ser eles a impor limites à ação de Deus e não a deixar-se surpreender pelo amor de Deus. Nesta altura, o acesso ao amor de Deus Pai estaria alfandeganizado, com denuncia o Papa Francisco no referido encontro da convenção do RCC em Roma:

“No entanto, não há maior liberdade do que deixar-se guiar pelo Espírito, renunciando a calcular e a controlar tudo, e permitindo que Ele nos ilumine, nos guie, nos oriente, nos impulsione para onde Ele quer. Ele sabe o que é necessário em todas as épocas e em todos os momentos. Isso significa ser misteriosamente fecundo (Exortação Evangelli Gaudium 280). Um outro perigo é o de tornarem-se ‘controladores’ da graça de Deus. Muitas vezes os responsáveis (eu gosto mais do nome de ‘servos’) de algum grupo ou algumas comunidades tornam-se, talvez inconscientemente, os administradores da graça, decidindo quem pode receber a oração da efusão no Espírito e quem não pode. Se alguém faz assim, por favor, não façam mais isso, não faça mais isso. Vocês são dispensadores da graça de Deus, e não controladores. Não imponham uma alfândega ao Espírito Santo”.

Marcos não deixou de registar esta falta de insensatez dos discípulos, pois queriam inverter os papéis. Não tiveram em conta a deontologia de pertencer a Jesus, de seguir Jesus. Afinal, o seu ser (a sua ontologia) não pertencia a Jesus, não vivia de Jesus.

Arrogaram-se um poder que não tinham nem nunca tiveram. Pior do que isso, esqueceram-se da dádiva que lhes foi concedida e nem sequer tiveram o cuidado de observar as maravilhas que Deus vai fazendo no meio do mundo e fora do ambiente restrito do seu grupo. Eles, afinal, não eram os únicos destinatários da salvação, e por isso confundiram a categoria de eleição com a condição de garantia, esquecendo-se que os que são escolhidos são submetidos a uma vocação que os chama a uma missão – a de levar a graça a todos os que ainda não conhecem ou ainda não ouviram falar do amor gratuito do Senhor da história. Isto não é garantia nem estatuto de nada.

Isto mesmo é traduzido Paulo na sua teologia da Igreja com a belíssima imagem agrícola da oliveira brava. Para respeitar a categoria fundamental de “mediação” (e que foi tão importante para a própria Lumen Gentium, como o é para a nossa condição cristã), Paulo coloca as coisas no seu lugar, e coloca a Igreja na sua condição etimológica e sacramental. O mesmo é dizer, Paulo alerta a Igreja para o perigo constante do farisaísmo, e fá-lo comparando a Igreja a uma oliveira brava:
Rom 11, 16 “e se forem santas as primícias da massa, igualmente o será a sua totalidade; se for santa a raiz, também os ramos o serão. 17 Se, porém, alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo oliveira brava, foste enxertado em meio deles e tornaste-te participante da raiz e da seiva da oliveira, 18 não te glories contra os ramos, porém, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti. 19 Dirás, pois: ‘Alguns ramos foram quebrados para que eu fosse enxertado’. 20 Bem. Pela sua incredulidade foram quebrados; tu, porém, mediante a fé, estás firme. Não te ensoberbeças, mas teme. 21 Porque se Deus não poupou os ramos naturais, também não te poupará. 22 Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte, também tu serás cortado.23 Eles também, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; pois Deis é poderoso para os enxertar de novo. 24 Pois, se fosse cortado da que, por natureza, era oliveira brava e, contra a natureza, enxertado em boa oliveira, quanto mais não serão enxertados na sua própria oliveira aqueles que são ramos naturais”.

Se a Igreja é uma oliveira brava então ela é sinal e sacramento da salvação (GL 1), a Igreja não é nem a oliveira nem os ramos naturais, nem os ramos nem muito menos a raiz ou a seiva. Ela é apenas um conjunto de ramos que, tal como tudo o resto, é objeto de benevolência, de um favor imotivado, não provocado, é objeto de um amor não causado nem merecido, logo é para ser agradecido. Isto significa que a Igreja é enxertada em algo muito maior do que ela – o amor gracioso de Deus, a sua promessa de um amor eterno e definitivo. Esta é a raiz que sustenta a fé cristã, pois a fé cristão não se sustenta a si mesma. A Igreja é, assim, um fermento na massa. Isto cria uma deontologia, uma maneira de ser e de agir na existência cristã, pois se a massa vem ter com o fermento o fermento não o pode recusar, não o pode catalogar ou menosprezar. Mais uma vez, a oliveira brava não tem consistência em si mesma. Não existe geração partenótica na fé cristã. Isto faz da fá cristã sempre uma confiança agradecida mas igualmente empenhada, pois está chamada a expandir no meio do mundo a gratuidade amorosa de Deus e não a “alfândega da fé”, pois Deus quer “que todos se salve e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tim 2, 4). Vamos ser nós a impedi-lo?


José Carlos Carvalho,
na Festa da Imaculada Conceição 08-12-2014